2021


Neoextrativismo e Subsistência nos estuários de Suape

Este trabalho apresenta uma cartografía crítica sobre o território de Suape, na região metropolitana do Recife, onde está implantado o maior Porto do Nordeste do Brasil. Nele, capas temporais superpostas misturam as camadas históricas da colonização, exemplificada pelos navios negreiros e os engenhos, com a fase atual de aceleração capitalista, exemplificada pelas infraestruturas do porto industrial e a turistificação.

O ensaio visual se baseia no conceito de coreopolítica para apresentar diferentes coreografias políticas em um território em conflito. As coreopolíticas são as do capital: o fluxo de navios de grande porte (de até 330 mt de comprimento) e a introdução de espécies exógenas, as dragagens que possibilitam a circulação no canal e causam o desvio do fluxo do rio e do ciclo de reprodução dos tubarões, e a rotina da segurança privada em moto na região administrada pelo Complexo Portuário Industrial Suape (CIPS).

As coreopolíticas da terra, são as dos mariscos nas beiras das praias e das marisqueiras que catam e pescam para subsistir, os moradores da região que transformam esse alimento em um delicioso compost, e das doceiras da região, algumas das quais coletam os frutos (cajus, jenipapo, jaca) para preparar suas iguarias.



Sobre o conceito de coreopolítica

O conceito de coreopolíticas foi criado pelo escritor André Lepecki, para ele o termo “coreografia” pode ser usada simultaneamente como prática política e como enquadramento teórico que mapeia, de modo incisivo, performances de mobilidade e mobilização em cenários urbanos de contestação, ou seja são múltiplas as formações do coreográfico. E elas se expandem bem além do campo restrito da dança.

Decido utilizar o termo como categoria ético-estético-política, ou seja como as coreografias, determinam os movimentos, as danças em relação com o chão. No território: são elas os movimentos da colonização? São os movimentos para o sustento da vida?

Qual a relação do corpo com o território? Qual a coreografia que determina sua atuação no mundo?


COLONIALOCENO: PERÍODO DE COLONIZAÇÃO DAS AMÉRICAS

Sobre o território do Cabo de Santo Agostinho e da Baia de Suape

Em 1498 Vicente Yañes Pinzón, da Espanha, chegou ao Cabo de Santo Agostinho antes que os Portugueses.

Desde a primeira colonização, este território é cobiçado por ser uma área de ancoradouro natural utilizado como porto para pequenas embarcações. É formado por uma saliência rochosa (extrusão vulcânica convexa que avança sobre o mar), o Cabo de Santo Agostinho; e outra área côncava, a baia de Suape, a qual é protegida por una linha de arenitos de praia [beachrocks] de oito quilômetros de extensão, por 150 metros de largura e 15 metros de profundidade. A região era habitada pelos caetés, que viviam numa dinâmica de interação entre as forças naturais e culturais no ambiente.

Do século XVI até meados do século XVII foi território de batalhas, logo da ocupação portuguesa houve a tentativa de colonização/ocupação holandesa, o qual desatou uma luta pelo controle do território que finalizou com a Insurreição Pernambucana.

Apropriação de terras

Depois das batalhas, e tendo os portugueses controlado o território, a região do Cabo entrou num período de esquecimento/abandono, pois as atividades e interesses comerciais estavam centrados na expropriação de mão de obra (pessoas escravizadas) e de apropriação de terras (sesmarias), instalando-se a monocultura de Engenhos de açúcar (80 fazendas e 5 engenhos de cana no total), o que colocou a Pernambuco no topo mundial na produção de açúcar no Século XVII.

Os primeiros sesmeiros da Capitania de Pernambuco receberam do Donatário da Capitania Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, suas datas de terras a partir de 1535.
As famílias beneficiadas eram quase todas ligadas à parentela do Donatário ou articuladas com capitais estrangeiros que aplicaram nos engenhos. Os engenhos geralmente tinham a casa grande, uma Igreja, uma casa de purgar e uma para as caldeiras feitas de taipa e demais edificações comuns em um engenho de cana de açúcar (a senzala). O canavial era plantado ao seu redor e o restante da terra consistia em matas, que não servia para plantação. En geral um engenho podia moer 4.000 a 5.000 arrobas de açúcar.



Expropriação forçada de mão de obra

Sendo já terra de domínio português, se transforma em área de porto negreiro, de pessoas trazidas à força da África. Em relação ao volume do tráfico de pessoas escravizadas, Pernambuco está em terceiro lugar, atrás da Bahia e Rio de Janeiro. No Brasil foram trazidas à força aproximadamente 5 milhões de africanos, dos quais quase 1 milhão foram desembarcados nos portos e praias de Pernambuco.

Após o Tratado de comércio anglo-brasileiro que proibia o tráfico de pessoas escravizadas, a lei antitráfico data de Novembro de 1831, a atividade ilegal se deslocou da capital para as praias de Itamaracá, Cabo de Santo Agostinho, Porto de Galinhas, Rio Formoso e Tamandaré, as quais eram adequadas para que as embarcações entrassem nas barras dos portos naturais. O fim do tráfico só ocorreu depois de decretada a abolição da escravidão no Brasil em 1888, o último país do Ocidente a libertar africanos escravizados.

As pessoas escravizadas foram abandonadas à própria sorte, assentando-se na região sem nem um acre nem uma mula* que constasse como propriedade oficial das mesmas.

Até a década de 1960 as famílias rurais, quilombolas e ribeirinhas da região, foram inserindo ao longo do tempo culturas como a da mandioca e da araruta, além do plantio de fruteiras (manguerias, mangabeiras, jaqueiras e cajueiros), que passaram a ser fonte de subsistência para muitos moradores locais.

ACELERAÇÃO DO CAPITAL E NEOEXTRACTIVISMO: ORDEM E PROGRESSO

Quando passam a ser implantadas políticas de desenvolvimento industrial no Nordeste, coincidindo com a ditadura cívico-militar Brasileira e sua ideologia nacional-desenvolvimentista, ocorre no ano de 1973 a expropriação ilegal das terras dos trabalhadores rurais e quilombolas, e o inicio da construção do Porto de Suape.

Assim, saíram de cena os senhores de engenho, entraram as grandes corporações. Eliminou-se a figura do escravo, mas permaneceu a exploração do trabalho da mão de obra barata e descartável.*

O Porto de Suape, ou Complexo Portuário Industrial de Suape (CIPS), é uma empresa pública-privada, conta atualmente com mais de 100 indústrias, é um dos maiores polos industriais do Nordeste do Brasil. A região compreende 13 550 hectares, abarca desde o Cabo, a baia de Suape, as ilhas de Cocaia, Tautoca e Mercês, até o município de Ipojuca, na qual se encontram áreas de manguezal, mata atlântica e do sistema estuarino-lagunar de quatro rios (Massangana, Ipojuca, Tatuoca e Merepe). Abarca os terrenos de 21 antigos Engenhos:  Jurissaca, Boa Vista, Algodoas, Tiriri, Mercês, Massangana, Serraria, Meio, Trapiche, Conceição Velha, Penderama, Arendepe, Tabatinga, Jasmin, Rosário, Setúbal, Utinga de Baixo, Utinga de Cima, Pirajá, Cedro, Ilha dos Martins.


Coreopolícias do capital



Coreopolícia Meteorito

O devir meteorito do homem(1) ou a implementação do sistema colonial-capitalista a qualquer custo:

ECOCIDIO = GENOCIDIO = EPISTEMICIDIO = COMUNITARICIDIO

Movimentação de capital externo para sua aterrisagem no território de Suape. Fluxos de capital público e privado são destinados a construção do Complexo Industrial e Portuário Suape (CIPS), no Sul de Pernambuco.

Sua constituição é questionada pois a área era/é de posse e uso de famílias locais-tradicionais (rurais, quilombolas e ribeirinhas). Um exemplo é a região que compreendia o Engenho Tiriri, a qual foi “vendida” para a empresa um dia depois que o INCRA (Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária) passasse a propriedade das terras para a Cooperativa Tiriri. Algumas famílias continuam morando nas terras, outros habitantes foram desapropriados ilegalmente, sendo empurrados para as periferias das duas cidades (Suape e Gaibu). A empresa tem exercido danos socioambientais que afetaram e afetam a dinâmica da vida na região, além das violências e o racismo ambiental sofrido pelas mesmas:

Na balança da desigualdade, as famílias antes donas das terras e de pessoas escravizadas são as mesmas proprietárias e donas de grandes empresas.*

O escândalo das propinas  em torno a Refinaria Abreu e Lima, a contaminação contínua do ar por causa da chaminé a céu aberto, e os casos de vazamento de óleo nos manguezais da região, exemplificam o meteorito-homem que destrói o ambiente.

Outros casos de violações de direitos:

  • A remoção forçada de famílias quilombolas e ribeirinhas em função do Estaleiro Atlântico Sul.
  • O CIPS é acusado de violência, despejos forçados, contaminação da água e fruteiras, e ameaças a habitantes e ativistas locais (do Fórum Suape e comunidades da região).

Meteorito Concreteglomerate

O Meteorito Concreteglomerate foi achado em fevereiro de 2021, na Praia de Suape. Este tecnofóssil, evidencia os efeitos no corpo da natureza/cultura da construção industrial-portuária. É formado por dejetos de cimento das construções das infraestruturas portuárias, misturado com os restos de conchas de mariscos, a comida do povo.



Coreopolícia Colonial

Coreopolítica colonial do controle político, religioso, económico numa terra qualquer.

O Convento das Carmelitas na Vila de Nazaré, hoje em ruínas, foi construído em 1597, partes das colunas foram feitas com blocos de arenitos de praia e tijolos. Do lado se encontra a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, a qual data de 1731. Na mesma região foram construídos 2 Fortes de defesa no período das lutas pelo controle da região entre os portugueses e os holandeses, na sua construção também foram encontrados os mesmos materiais que no Convento.

Desde a aceleração na implantação do Porto de Suape nos anos 2000, o território tem sido monitorado pela segurança privada do porto. Na atualidade, ano 2021, duas duplas de segurança privada em motos controlam diariamente a vida, percorrem cada dia o território do Parque Armando Holanda Cavalcanti, que no Plano Diretor de Suape de 2016, foi determinado como uma zona de proteção cultural. Os nativos têm proibido construir em seus terrenos. As motos-homens são os que controlam e vigiam para que não sejam feitas novas construções nos terrenos, também vigiam a instalação de pequenos letreiros que os pequenos comerciantes colocam nas ruas. O CIPS é acusado de violência, despejos forçados, contaminação da água e ameaças a habitantes e ativistas locais (do Fórum Suape e comunidades da região) tendo o Ministério Público recebido denúncia da possível formação de milícias atuando na região, a “milícia Suape”.



Coreopolícia Draga

Coreopolítica draga, movimentos de abertura de uma ferida no mar e de barragem dos fluxos vitais. A criação de canais e barragens, e a consequente modificação do ecossistema de estuário, para que circulem no local navios de 330 metros de comprimento.

Movimentações gigantescas de terra, explosivos, máquinas e capitais para modificar o território. De 2009 a 2017 foram gastos pelo menos R$248 milhões em serviços de dragagem nos canais de acesso ao porto.

Na atualidade a mais grave agressão ambiental são as dragagens realizadas constantemente para garantir a profundidade adequada para as manobras e atracagem dos navios. Ao escavar o solo, as dragas trazem à tona metais pesados e poluentes que já estavam inativos. Algumas dessas substâncias, como mercúrio, enxofre e nitrogênio, reagem com o oxigênio e são absorvidos pela cadeia alimentar, o que pode provocar doenças e mortes entre peixes, golfinhos e até seres humanos que se alimentarem dos peixes ou crustáceos contaminados. Outro problema é causado pelas partículas menores, que se espalham e soterram corais, moluscos e pequenos caranguejos. A lama da dragagem também cobre as raízes do mangue, reduzindo a capacidade de oxigenação e destruindo os ovos ou filhotes de animais que usam o manguezal como berçário.

Barragem: o fechamento da comunição do mangue com o mar entre a ilhas Cocaia e Tatuoca para construir a estrada que leva até o Estaleiro Atlântico Sul deixou a agua represada onde era o mangue vivo. Os pobladores do Quilombo Ilha de Mercês perderam seu sustento a base de peixes e moluscos.

Uma das consequências ambientais da destruição dos mangues foi o desvio do ciclo de reprodução dos tubarões (o tubarão-tigre e o tubarão cabeça-chata) que migraram para parir no estuário do rio Jaboatão, perto da cidade de Recife. Desde a década do 90 começaram a explodir os ataques de tubarões, foram aproximadamente 40 incidentes, causando a morte de 13 pessoas.

Outros fatores decisivos desta mudança foi o aumento do tráfego dos navios na região, pois quando o vento sopra forte de sul a sudeste, as correntes oceânicas do sul para o norte se intensificam, trazendo para perto das praias de Boa Viagem, Recife os tubarões que seguem os rastros de navios do porto.



Coreopolícia Praga

Coreopolítica praga ou a colonização de uma espécie que cresce aceleradamente, ao mesmo tempo que sufoca e destrói as condições de vida de outres.

A colonização se deu/dá pelos navios; a partir do século XVI o povo Caeté foi totalmente extinguido. Na atualidade os navios que chegam desde o Pacífico Sul trazem no lastro uma espécie exógena, o coral-sol. Este tipo de coral cresce e se reproduz rapidamente formando colônias, as quais impedem a reprodução do coral cérebro, espécie endógena da baia de Suape.

Rota dos navios: foi preciso abrir um canal para o ingresso dos navios, para tanto se destruiu um trecho da linha dos arenitos de praia [beachrocks]: 300 metros de comprimento, por 150 metros de largura e 15 metros de profundidade.


Coreopolíticas da terra

As conchas são os ossos do mar, disperso esqueleto.

J. Guimarães Rosa



Coreopolítica Mangue

As marisqueiras de Suape percorrem a baia, seguem os ritmos das marés, na procura e cata de mariscos no Pontal de Suape até sua venda no povoado para donos de pequenos restaurantes da região. Em geral é uma atividade realizada por mulheres, esta profissão vai passando de geração para geração. É um trabalho pesado em que a quantidade de horas depende da maré, as marisqueiras geralmente saem em grupos de quatro ou cinco por canoa ou lanchas, percorrem aproximadamente 2 km até a ilha da Cocaia. Só voltam quando os cestos e baldes estão cheios. A partir daí vão tratar (limpar), cozinhar, embalar, pesar e vender o produto.



Coreopolítica Compost

O Caldinho de marisco do Rã e da Rosa.

Sr. Maébrio, apelidado Rã, percorre em moto aproximadamente 1 km para comprar o marisco. Compra diretamente da Dona Liu, marisqueira e pescadora da região.

O marisquinho é um superalimento, passa de mão em mão até a cozinha, um processo manual de um para um. É o sonho do mar que alimenta o povo.

Rosa prepara por semana 3 quilos de marisco, uma alquimia que se come com farinha seca de mandioca, limão e pimenta da casa.

O restaurante do Rã e Rosa não aceita cartão. É o bar do não-turista, onde o Cristo-Olaxá recebe a gente ancorado num vaso de cimento, e algumas sextas-feiras à tarde, com o bar já fechado, monte de pipocas espalhadas nas mesas esperam a visita dos encantados que vivem na mata , os malunguinhos.

Cada visita é como a primeira visita, hora aparecem chifres na árvore, hora se prova o doce de cajá, hora Rosa dança, hora Rosa encarna Oxum!  



Coreopolítica Cajú

Os percursos dependem da época do ano e das fruteiras. A safra de caju acontece a partir da primavera e continua até o verão. Algumas das doceiras da região, como Gueguel, saem para colher frutos em baldes. Ela e seu companheiro Eduardo este ano coletaram 3.000 frutas dos cajueiros que se encontram na região da Vila de Nazaré. A produção de passas-de-caju leva aproximadamente 3 dias de cocção, as castanhas podem ser armazenadas, e serão torradas no decorrer do ano.

Outra das fruteiras da região é o jenipapo, esta fruta é utilizada na preparação do licor de jenipapo, típico da região.


o mar à noite tece arrecifes

as mulheres encantadas dançam nas águas

e sonham a comida do povo


1 – “So the meteor 65 million years ago reset the Earth’s biology. Currently, we are the meteor. There will be winners and losers. There’ll be more loses than winners but the winners will be the ones who will go on to provide future generations. Jan Zalasiewicz podcast


Referências Bibliográficas

Suape pelo avesso / Marco Zero (link)

Atlantico Sul Shipyard, Pernambuco, Brazil / Environmental Justice Atlas (link)

Significados e conflitos expressos na paisagem cultural do Cabo de Santo Agostinho/ PE – Helen Maria Palmeira Medeiros, Dissertação / UFPE, Recife 2013.

Aspectos geoambientais entre as praias do Paiva e Gaibu, Município do Cabo de Santo Agostinho (Litoral Sul de Pernambuco) – José Diniz Madruga Filho, Tese de Doutorado / UFPE, Recife 2004.

Patrimônio geológico e estratégias de Geoconservação: popularização das Geociências e desenvolvimento territorial sustentável para o litoral Sul de Pernambuco – Thaís de Oliveira Guimarães, Tese de Doutorado / UFPE, Recife 2016.

Coreopolítica e Coreopolícia – André Lepecki / Ilha, Janeiro – Julho 2011

slavevoyages.org


Trabalho desenvolvido nos cursos Cidades Multiespêcies, e Bits, Urbs e Virus, na FAU da UFPB.

Orientação do Arq. Pablo DeSoto www.pablodesoto.org